Um resumão de 3 anos de Europa
Uma cartinha sobre expectativas, realidades, o passar do tempo e o que eu não achei espaço pra dizer antes
Era uma semana como qualquer outra. Eu estava anotando os compromissos do mês na agenda até que vi o dia 11 de outubro. Me dei conta que essa data marcava algo no meu calendário particular: três anos que a gente veio morar na Europa. Primeiro me bateu aquele “parece que foi mais”, seguido de “tá louca? parece que foi muito menos”. Depois de passar um tempo nessa dicotomia, os três anos em si, parecendo mais ou menos três anos, me bateram forte.
Existe algo com datas redondas. Talvez seja uma herança da minha família, que ama celebrar as datas no dia certinho, com uma rigidez que parece ignorar os imprevistos. Talvez seja assim com todo mundo. Mas pensar que eu estou aqui há três anos me fez sentir com aquele clima de final de ano, quando a gente para pra pensar nas coisas que fez e também nas que não fez. Veio uma avalanche de lembranças e um pouco de ansiedade dos planos que eu imaginei e não cumpri.
Eu não costumo falar muito sobre migrar, nem nas redes, nem com meus amigos que estão no Brasil. Parece um assunto meio deslocado, meio sem espaço pra entrar nas conversas do dia a dia, essas conversas entre fusos nas quais a gente compartilha os destaques e as banalidades, mas não tem muito como aprofundar. Conversar sobre migrar talvez seja mais para uma mesa com taças de vinho e uma noite que passa devagar ou um brunch que vira pôr do sol. Não encaixa bem nos áudios que eu mando para ter ao menos a proximidade que a voz, em suas nuances e emoções, proporciona. Logo eu, tão fã das palavras escritas.
Assim, quase todas essas conversas sobre migrar ficaram com os amigos que também migraram. E que bom que eles existem. Porque tem algo muito particular em botar a mochila nas costas e ir. Tem muita insegurança, uma certa solidão, uma vontade compartilhada tão grande de viver coisas novas que nos fez aceitar as partes não tão bonitas.
Foram incontáveis as conversas calorosas sobre a burrice da burocracia por aqui, os roteiros de viagem compartilhados e os brindes pra comemorar pequenas grandes vitórias, seja assinar o contrato de um apartamento ou finalmente ter o documento que demorou muito mais do que deveria pra chegar. Foi fundamental ter essas pessoas pra se indignar comigo e também pra rir de todas as coisas que pareciam surreais demais para serem verdade. Não é à toa que sigo querendo trazer todos para Barcelona ou proximidades. É carinho.
Pensando nas coisas que eu não disse nesses três anos porque não achei espaço, resolvi escrever hoje. Pra contar um cadinho da minha experiência. Que teve seus altos, mas seus muitos baixos. Que foi bastante idealizada e tomou rumos bem distintos do que eu esperava.
Caso cê não saiba, eu vim morar primeiro em Portugal, um país que compartilhava o mesmo idioma, o que parecia ser mais fácil. Mas que também compartilhava uma história de colonização horrorosa com a gente. Isso pesou muito na experiência que eu tive. Talvez seja uma hipocrisia, porque a história, a riqueza e o ‘hype’ da Europa é construído em toda a exploração e colonização, mas ser tão próximo, tão pessoal, tão nosso complexifica as coisas e as leva para um outro nível. Já falei sobre isso com outros amigos latinos e essa relação mais conturbada com seus países colonizadores está presente sempre. E não é algo que a gente, como imigrante, sente sozinho. Eles, os locais, sentem também. Só que de perspectivas bem distintas. A gente com um amargo na boca. Eles (aqui aquele parêntese pra dizer nem todos, mas vários) com a sensação de que nos fizeram um favor ou que foi bonita a nossa “troca cultural”.
Em geral, podemos até concordar em discordar sobre sei lá, qual a melhor drag da temporada de Drag Race ou se o vestido é dourado ou azul, mas sobre coisas tão importantes, é difícil chegar num meio termo. Mais que apenas uma opinião, essas diferenças fazem com que nós, muitas vezes, sejamos tratados “diferente“. Seja no “vocês falam brasileiro”, no “nossa, Brasil, mas a menina (no caso, eu) não parece brasileira”, seja no mais exacerbado “vocês brasileiros são todos assim” e por assim dizer uma atrocidade, um insulto. A gente (Ícaro e eu) vivemos uma experiência de imigração de muitos privilégios. Com documentos, um trabalho que pagava bem. Os dois brancos. Dentro de quase todos os padrões. E nem assim saímos ilesos de sofrer xenofobia. Não que exista justificativa pra passar por isso, né, mas só exemplificando o quanto é uma realidade.
Como tudo na vida, Lisboa também teve suas belezas. Suas partes bem felizes. Se eu fecho os olhos, consigo lembrar direitinho da sensação de chegar num 11 de outubro, a uma Lisboa ensolarada. Os prédios de azulejo coloridos enchiam os olhos, as ruazinhas estreitas de pedras pareciam poesia, as árvores começavam a amarelar indicando o começo do outono. Tudo parecia gigante - uma ironia com como é na realidade. Passar pela Baixa até o Arco da Rua Augusta e ver aquela moldura pra água e pra um céu azul fez o meu olho encher d’água. Eu estava ali. Num outro continente. Num outro país. Prestes a viver as coisas que eu sempre quis e que, apesar de uma confiança inexplicável e bem infundada se eu for ser sincera, pareciam impossíveis de acontecer. Mas aconteceram. E isso foi de uma intensidade tremenda.
No meio dessa história, acho que vale destacar que a gente vendeu tudo, empacotou o que sobrou, entrou num avião por 12 horas e chegou em Lisboa sem nunca ter pisado na Europa. Sem nunca ter saído da América do Sul. Sem saber muito o que esperar de nada. Da arquitetura. Da comida. Das pessoas. Dos lugares. Foi muito por conhecer e eu tenho muito carinho por esses primeiros dias de ‘descobrimentos’. Carinho por essa sensação de ver a cidade pela primeira vez. Por sentir outros sabores. Carinho por essa excitação de sentir um recomeço fresquinho esperando por mim.
A gente não chegou no momento ideal pra conhecer uma cidade, em meio a uma pandemia, lockdowns e muitas restrições, então demorou para Lisboa e nós nos fazermos íntimos. Foi acontecendo devagar. E a cidade vai ter pra sempre o seu charme, suas vistas de tirar o fôlego, capazes de fazer a gente olhar pro horizonte por tempo indeterminado. Desde que fui embora, já voltei duas vezes e para sempre vou nutrir um carinho especial pelo meu bairro - que chama Príncipe Real, caso cê esteja planejando viajar para Lisboa, vale muito a pena visitar -, pelas praças em que passei a tarde lendo no sol, pelo menu pequeno almoço da Padaria Portuguesa, pela minha Livraria da Travessa - sim, a mesma do Rio.
Apesar do motivo não ser dos melhores, Lisboa tem muito do Brasil. A música brasileira tá no rádio, na loja, na rua. A gente partilha muitas referências. Mais do que isso, são muitos os brasileiros em todos os lugares, então tem sempre um conforto sonoro pelas ruas ao ouvir um sotaque amigo.
Quando eu finalmente conheci a cidade por inteiro, senti que ela era pequena demais. Que eu - ou o que eu queria viver - transbordavam as suas margens. Lisboa é charmosa, mas é pequena. Um destino de férias para apaixonar muita gente - e são muitos, mas muitos mesmo os estrangeiros que se mudaram pra lá depois de visitarem e se deslumbrarem com a cidade. Só que, de repente, eu me vi em um espiral de fazer sempre as mesmas coisas, de não me deslumbrar mais.
Eu sabia que eu poderia não gostar da cidade que escolhi, visto que estava conhecendo-a pela primeira vez. Era arriscado. Mas demorou tempo pra eu sentir que podia falar disso. Porque eu também não queria estragar a experiência de quem veio comigo. Mas, felizmente, aconteceu pra ele também. E aí a gente fez todo o movimento de mudar de novo. Pra outro lugar. Um lugar no qual a gente finalmente tá se encontrando, onde finalmente estou vivendo uma parte daquele sonho que eu tinha de morar fora e experienciar coisas novas.
Sinto que depois de um tempo mais encasulada, tô desabrochando, fazendo as coisas que queria fazer, vivendo uma grande parte da vida que eu queria viver. Demorou mais do que o esperado, mas está acontecendo. Numa cidade frenética, cheia de gente, movimento, coisas acontecendo. Com seus belíssimos tons de marrom, terracota e bege, suas ruas amplas repletas de árvores. Com seus espaços de pausa no meio do caos, crianças brincando na rua e mesinhas de restaurantes e bares sempre cheios.
Barcelona é uma cidade que parece viciada em viver. E mesmo quando eu estou só me deslocando por aí, me invade uma sensação de que “é aqui”. Pela primeira vez na minha vida inteira. Pode ser algo passageiro, eu me digo, mas, ao mesmo tempo, é no aqui e agora que eu preciso sentir que pertenço. É nesse exato momento que tenho que sentir que estou onde gostaria de estar.
Ainda no universo das expectativas, eu pensava que morar fora ia me fazer viajar horrores, pra todos os lugares que sempre quis conhecer. Que as passagens iam ser ridiculamente baratas, tipo 5 euros. Uma doce ilusão. É claro que é muito mais barato viajar aqui do que no Brasil, mas essa passagem ínfima nunca me apareceu não.
A essa altura, eu achava que já teria conhecido a França, a Itália, a Grécia… Três anos depois, eu não fui pra nenhum desses lugares. Mas fui pra vários outros que nem imaginava. Tipo Viena, Mallorca, Croácia… Mesmo de uma maneira diferente da que eu pensava, nesses três anos eu viajei mais do que na minha vida inteira até então, conheci pessoas de outros lugares e experienciei outras culturas. Vi muitos shows de artistas que não teria condições de ver morando em Porto Alegre - e não é só da senhora Beyoncé que eu tô falando não. Fiz coisas que queria, outras que não sabia que queria e foi justamente por esses momentos de felicidade absoluta, uma viagem, um espaço de festival lotado pulando enquanto Harry Styles canta One Direction ou um show intimista de Drexler, cantando com um coral que arrepia até os pelinhos da alma, que me fizeram fazer essa grande mudança.
É claro que esses momentos são especiais não só pela sensação especial que causam, mas porque realmente acontecem especialmente de tempos em tempos, rompendo o cotidiano. Essa, inclusive, talvez seja a minha principal irritação com conteúdos sobre morar fora que aparecem nas minhas redes: sempre parece que o mundo é uma festona, repleta de drinques, looks icônicos, passeios idem… E a minha experiência não é essa. Mas aí é outro papo, sobre o que a gente mostra de redes sociais ou não, eu até falei um pouco sobre isso nessa newsletter aqui.
Entre me maravilhar, me desesperar e todas as coisas que estão no meio do caminho, esses três anos foram uma experiência incrível, que vai continuar acontecendo por tempo indeterminado - quem sabe eu não te conto as novidades quando fechar mais uma data redonda? Eu sinto que mudei muito. Que me conheço bem mais. Mas que também tô me sentindo mais apta a cutucar o que eu não sei sobre mim e tentar descobrir.
Uma amiga mudou recentemente de país e quando ela começou a questionar algumas coisas, a primeira coisa que eu disse foi que essa mudança geográfica tão grande pode ser um impulso pra mudar outras coisas com as quais estamos acostumadas/acomodadas. Porque precisa de uma certa coragem pra abrir mão do conhecido e se jogar, sem muita segurança, em outros mundos. A gente expande. E talvez não caiba ou não se nutra de outras várias coisas que considerávamos certas. Assim como um endereço, uma rotina, muito do que a gente conhece, certeza vem e vai. Esvai. Isso assusta, mas também, que assim seja. É sinal de movimento. Renovação.
Por último - e sim, eu sei que esse texto está gigante, inclusive, vou pular as dicas hoje e te mandar uma news só com o que eu assisti/li nessas últimas semanas para todo mundo ter entretenimento, mas cê não cansar de mim - não tem como falar em migrar sem falar em saudade. Em tudo que fica. E que muda enquanto a gente não está lá. Eu sempre digo que morar longe é um eterno lidar com as faltas. A gente nunca está completo. Porque eu morro de saudade das pessoas, mas não da cidade. Quando eu tô lá, queria ter algumas coisas daqui. Quando me deslumbro com algumas coisas aqui, queria dividir com quem não está.
Nesses três anos, eu não experienciei dividir nenhuma das minhas duas cidades com nenhum amigo ou familiar e eu sinto que tem muito de mim que está só aqui. Nos lugares que eu amo, nas coisas que eu faço, nas histórias que eu criei. E só uma foto ou um relato não dá conta. Quem sabe no futuro, né?
Migrar tem sido intenso. Eu me sinto uma década mais safa. Porque aconteceu tanta, mas tanta coisa que esses três anos valem por dez. Um pouco dele está resumido nesse texto, uma tentativa de dividir o que acontece por aqui em uma camada mais profunda. De compartilhar as coisas que me acontecem e que parecem não caber em outro lugar. Para a gente matar um cadinho da saudade enquanto não nos encontramos pessoalmente por aí. Ou por aqui.
PS. Aproveitando o tema, um anúncio importatíssimo: em março de 2024 eu tô chegando pra matar um pouco das saudades imensas. É só um mês, então vamos nos agilizar pra se ver o máximo possível, preferencialmente com um pão de queijo na mesa sempre que possível.
PS. 2: vou deixar essa música que me acompanhou durante todo o tempo em que eu estava escrevendo e que, de alguma maneira, tem a ver com o tema dessa news, ainda que seja uma carta de amor e saudade a outra cidade. Escuta até o finzinho que tem Drexler, um poeta e também gostoso.
É isso, nos lemos em breve,
Um beijo,
Marcie